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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 24/01/16

O dia em que sonhei ser vilã


Recebi o e-mail de uma moça (que não conheço) avisando que um jornalista (que também não conheço) andou me citando num texto. A moça, além de me transcrever o texto dele, mandou junto o e-mail do sujeito para que eu o agradecesse.

Li o texto. Ele elogia o bairro em que moramos e, no final, celebra a possibilidade de me ver caminhando pelas ruas. Sujeito simpático.

O que uma vilã faria? Nada muito maquiavélico. Simplesmente tocaria a vida. Anda atarefada, não conhece nem a moça nem o jornalista e há outros assuntos pendentes. Mas não sou vilã. Sinto obrigação de dar retorno, então mando um e-mail pra moça agradecendo o contato e outro e-mail para o cara agradecendo a citação. Feito. Levou cinco minutos para ser educada.

Passa uma hora e a moça volta a escrever dizendo que avisou o jornalista de que eu havia respondido pra ela, porém ele disse que não havia recebido nada. Ué. Respondo pra ela que vou reenviar o e-mail pra ele, e reenvio.

Daqui a pouco entra um e-mail dele agradecendo meu agradecimento. Ótimo. Acho que agora posso continuar a trabalhar.

Em 15 minutos, ele escreve de novo pedindo meu endereço pra mandar um livro de sua autoria. Recebo cerca de cinco livros por semana e o dele entrará para o depósito onde guardo tudo que levarei para minha cela quando pegar uma prisão perpétua, mas mando o endereço.

Mais um pouquinho, ele escreve de novo dizendo que soube que a editora dele já havia me mandado o livro, não recebi?

Seria a hora de dar minha paciência por encerrada e me transformar, finalmente, numa vilã bem pérfida, mas não consigo e esconjuro meus pais pela maldita criação que me deram. Levanto, vou dar uma olhada nos milhares de livros empilhados pela casa, levo um século fazendo a busca e encontro o exemplar. “Sim, de fato, seu livro está comigo. Obrigada, um abraço”.

Já é noite, nem tinha reparado. Na manhã seguinte, abro minha caixa de e-mails e há uma mensagem do rapaz pedindo opinião sobre um conto dele. Devo ler? Sou cria de Madre Tereza. Leio. E não gosto.

Aí faço um teatrinho, que é o mais perto que consigo chegar da vilania. “Olha, ando sobrecarregada, tenho vários textos para entregar, minha filha foi expulsa do colégio, minha mãe foi hospitalizada, meu cão está deprimido, a empregada fugiu com o porteiro, você entende, não é?”. Significa que não me manifestarei nem nesta, nem na próxima encarnação.

Ele responde dizendo que entende e que aguardará ansioso pela minha opinião, ou seja, em breve receberei outro e-mail dele, cobrando a leitura.

E assim a gente constrói uma carreira de boazinha, mesmo sabendo que as vilãs é que são espertas. Toda essa trabalheira porque um cara que não conheço me vê caminhando de vez em quando pelas ruas. Acabo de voltar do mercado da esquina. Adivinha.



Jornal Zero Hora - 24 janeiro 2016
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Vem cá, me dá um abraço?!?!?

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