Enclausurado
Quando soube que o livro Enclausurado era narrado por um feto, gelei. Não sou muito fã de narrações feitas por crianças, o que dizer de um ser que nem criança ainda é? Na mão de um escritor menos tarimbado, teria tudo para transformar-se numa bizarrice, mas estamos falando do grande Ian McEwan, cujo talento anula qualquer desconfiança. Mestre é mestre: fui direto da primeira à última página sem pausa para buscar um copo dágua. E minhas gargalhadas confirmaram o prazer da leitura. Fazia tempo que não me divertia tanto.
De dentro da barriga da mãe, escutando tudo o que ela conversa, assim como os sons que a circundam, o bebê absorve informações sobre o mundo atual, incluindo alguns segredos íntimos e bem indigestos: mamãe planeja, com o amante, matar seu pai. Infiltrado no corpo da iminente assassina, ele é uma testemunha auditiva e impotente. Só lhe resta tentar entender o que está acontecendo lá fora e torcer para que a vítima escape. Eu quase pude ver o sorriso no rosto do autor enquanto ele se dedicava à engenhosa tarefa. Como toda boa trama policial, a parte psicológica é sempre a mais saborosa.
Aquele pequeno ser já formado (é o nono mês de gravidez), sem espaço para expandir-se, aguardando entediado o momento de nascer, acaba forçosamente participando do crime e recebendo informações privilegiadas: ele escuta os batimentos cardíacos de sua mãe, percebe a adrenalina provocada pelo medo dela, interpreta as nuances de seu tom de voz, sente as emoções todas que ela sente, desde o pânico contido até o prazer mais obsceno. Aliás, a descrição das relações sexuais da gestante sob o ponto de vista de quem está presenciando o ato de perto – muito, muito perto! – são absolutamente originais. E cômicas, claro.
Começou a Feira do Livro de Porto Alegre. Bancas e balaios com mil tentações, mas esta é a minha dica. Um texto espetacular e inteligente em apenas 200 páginas (sei que há pressa em voltar ao smartphone) e com um enredo que merece mesmo esse título, já que Enclausurado é um livro que prende o leitor.
Já que pretende ir à Feira, aproveite para me prestigiar no Pavilhão de Autógrafos. Aguardarei você às 17h do próximo sábado, dia 5, quando lançarei Um Lugar na Janela 2, o segundo volume dos meus relatos de viagens, em que me apresento nada enclausurada: livre e solta pelo mundo.
Jornal Zero Hora - 30 outubro 2016
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