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domingo, 26 de julho de 2015

Martha Medeiros - #dasantigas

Casa de vó
(Martha Medeiros)

Eu faço todo o possível para respeitar a opinião e o gosto alheios. Ainda não cheguei à tolerância total, mas tenho feito progressos. Hoje consigo aceitar tranquilamente que alguém considere água tônica uma delícia ou que seja fã da banda Calypso. Cada um na sua. Mas preciso evoluir mais, muito mais, porque ainda fico perturbada quando alguém diz que foi passar a lua-de-mel na Disney. Tudo bem, é uma escolha, um direito, o que tenho a ver com isso? Ainda assim, não consigo evitar o espanto. Dois adultos apaixonados em lua-de-mel na Disney. Jantando com o Mickey!
Isso não significa que eu seja desprovida de espírito lúdico e de apreço à fantasia. Certa vez ouvi a Luana Piovani, num programa de TV, dizendo que a casa dos avós dela foi sua Disney. Bingo. A casa da minha avó também foi, Luana. Tinha uma espécie de morro nos fundos da casa, todo gramado, que dava para um outro nível do quintal. Bem no centro deste morro (deve ser um morrinho, mas a memória de uma criança não respeita proporções exatas) havia uma pequena escada de pedras, porém a gente subia sempre pela grama, claro. Éramos 13 primos fazendo trekking naquele latifúndio.
Lá em cima havia a churrasqueira e algumas árvores, mas o mais tentador era um quartinho misterioso, um depósito meio sem função, nosso QG infantil, que às vezes servia de casa de bonecas, em outras de redação de jornal — eu tinha o topete de escrever as aventuras da família. Se os fundos da casa eram mágicos, a casa propriamente dita era nossa Neverland. Tinha lareira, tinha adega, tinha sótão. Era como estar dentro de um cenário de filme, e havia também a Lucia, uma empregada alemã que parecia uma agente da Gestapo, nunca vi loura tão séria e retesada, mas preparava um cachorro-quente que jamais os Estados Unidos viram igual. Sério: a casa da avó da gente desbanca qualquer Epcot Center.
Hoje estas casas antigas foram derrubadas para dar lugar a prédios imensos, mas mesmo dentro de um apartamento é possível existir uma “casa de vó”, porque casa é só uma maneira de chamar, o que vale é o espírito do lugar, e havendo uma avó que entenda seu papel de proprietária não de um imóvel, mas de um segredo, está garantida a magia. Casa de vó é onde a lasanha e o pastelão ganham um sabor diferente, onde os ponteiros do relógio correm mais lentos, onde os ruídos são mais audíveis, onde o teto parece mais alto, onde a luz entra mais discreta entre as persianas, onde os armários escondem roupas antigas e fundos falsos, e só isso é falso, tudo mais é verdadeiro. Casa de vó é onde os brinquedos não surgem prontos, são inventados na hora. É onde a gente encontra os restos da infância dos nossos pais. E fotos de bisavós, de tios… epa, este sujeito aqui, quem é? Acalme-se, é o namorado novo da sua avó, você achou que ela ficaria viúva para sempre? Ela é sua avó, não um matusalém.
Se as avós não são mais as mesmas de antigamente, em suas casas ainda sobrevive um encanto que não muda. Será sempre um lugar secreto onde encontraremos um piano sem uso, alguns recortes de jornal, anéis coloridos, um bicho preguiçoso, uma máquina de escrever ou de costura, algo que seja estranho aos olhos de uma criança — e espaço, muito espaço para uma imaginação que não é estimulada nem na Disney, nem na rotina maluca de hoje, só mesmo lá dentro, no endereço do nosso afeto mais profundo, onde tudo é permitido.
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