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quinta-feira, 7 de abril de 2016

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 06/04/15

Arte e política


O blogueiro que pediu boicote a certos intelectuais infelizmente não está sozinho. A disputa partidária está fritando o cérebro de alguns. Quem adorava Chico Buarque e Luis Fernando Verissimo passou a desprezá-los pela diferença de convicções. Já vi gente debochando das canções de Lobão, mesmo que, anos antes, não perdesse seus shows. Discordar de um comportamento, ok. Todo artista é um cidadão e suas atitudes são passíveis de críticas. Mas a arte não pode ser julgada da mesma forma. Ela é ruim ou boa por si mesma, não pela conduta pessoal do autor. É um legado cultural que precisa ser preservado.

Até hoje me insultam por adorar Woody Allen – “como você pode promover um pedófilo?”. Não acredito que Allen seja pedófilo. Se for, que o prendam, mas não deixarei de admirar seu talento, assim como admiro os filmes de Roman Polanski (condenado por abuso sexual de uma adolescente), reverencio as obras de Picasso (machista, egocêntrico), me encanta ver Nick Nolte e Sean Penn atuando (já foram presos). 

Sou fã dos Rolling Stones (drogas, drogas, drogas), gosto dos textos de Nelson Rodrigues (reacionário, obsceno), estimo a carreira construída por Marilia Pêra (pró-Collor), admiro o trabalho de Letícia Sabatella (pró-Dilma), reverencio a literatura de Machado de Assis e Jorge Luis Borges (ambos de direita) e de Mario Benedetti e García Márquez (ambos de esquerda), apreciava o suingue de Simonal (rei da pilantragem), acompanhava o trabalho de Paulo Francis (elitista, petulante), respeito Roberto Carlos (apoiava o regime militar), me impressionam os murais de Diego Rivera (traiu Frida Kahlo com a irmã dela) e sigo escutando Janis Joplin, Cassia Eller, Kurt Cobain, Amy Winehouse e Cazuza, que nunca ganharam medalhas por bom comportamento.

Se você fizer a lista dos seus, só encontrará anjos que votam como você?

Boicotar uma empresa a fim de que ela melhore seus serviços é um ato político. Já rechaçar a obra de um artista por seu partidarismo é o mesmo que condená-lo por sua inclinação sexual, cor da pele ou estilo de vida. Lógico que devemos escolher quem pode frequentar nossa casa, ser nosso sócio, subir conosco ao altar, mas depreciar boas músicas, filmes e livros criados por X ou Y, alegando que, longe dos holofotes, eles não compactuam com nossa visão de mundo é uma reação provinciana. Negar a eles o gostinho da nossa audiência não os tornará supérfluos – nós é que perderemos a oportunidade de expansão.

“Prepara/ que agora é a hora/ do show das poderosas/ que descem e rebolam/ afrontam as fogosas.” Mais poesia? “Hoje ninguém dorme em casa/ hoje vai ser meu brinquedo/ porque eu quero te pegar gostoso”. Tudo bem, todo mundo na pista se divertindo com as funkeiras, mas é isso que nos resta?

Boicotar Chico Buarque é o fim.



Jornal Zero Hora - 06 abril 2016
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