Uma das lembranças mais nítidas e profundas da minha infância está relacionada à sala de estar onde meu pai se instalava para ouvir música depois de chegar do trabalho. Ele era o DJ da família. Com a mulher e os filhos em volta, colocava para tocar o melhor da MPB e também Burt Bacharach, Ray Charles, Astor Piazzolla e Beatles. Se comparado a outros pais da época, um homem antenado e de bom gosto, mas o que mais me surpreendia era a paixão que ele tinha por uma maluca de voz rasgada que usava óculos redondos e umas mechas coloridas no cabelo. Foi ele que me apresentou Janis Joplin.
Nesta semana, meu pai completa 80 anos e ainda é alucinado por música, apesar de hoje estar mais para Schubert do que para o rock e o blues. Um dia chego lá – na música clássica. Ainda estou presa aos rebeldes que cantam com o nervo exposto, e ao assistir ao documentário Little girl blue, sobre Janis, voltou tudo: a infância, minha adolescência, minha formação musical e a lembrança de como me tornei quem sou.
O filme só é recomendável para quem é fã da cantora. Os primeiros 20 minutos são enfadonhos e não é uma grande realização cinematográfica – vale pelo espólio artístico de Janis. A história da menina fora dos padrões, que se achava feia e que era esnobada pelos rapazes, mas que acabou se encontrando na música e através dela escancarou toda a sua carência, toda a sua necessidade de ser amada, toda a angústia e o medo de que sua vida fosse vivida em vão.
Sabemos como esta história terminou: ela foi mais um talento que saiu de cena aos 27 anos por causa de uma vida embalada por muita bebida e droga, a exemplo de Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse.
Admiro os talentos de cara limpa (nem todos os meus heróis morreram de overdose, a maioria deles segue viva e sóbria), mas arrasto uma asa para aqueles que entregam a alma e dão saltos sem rede. Saí do cinema tentando lembrar quem são hoje os artistas vulcânicos, aqueles que realizam sua arte às ganhas, e, talvez por estar condicionada pelo filme, só me vieram à cabeça Cássia Eller, Cazuza, Renato Russo, Tim Maia, Raul Seixas. Os que já se foram.
Eu sei, os tempos são outros. Tanto aqui quanto lá fora, são inúmeros os artistas que superaram a fase das viagens lisérgicas e se mantiveram criativos e operantes (o que dizer de Keith Richards, que ainda enterrará a todos nós?), mas tenho um carinho quase maternal por aqueles que desceram muito fundo em busca de sei lá o quê. Os que não encontraram outra maneira de se conectar com suas emoções mais cruas, mais livres e incendiárias.
Janis Joplin, a exemplo de alguns de seus colegas doidões, não chegou nem perto dos 80 anos, mas, como eles, deixou um legado eterno.
Jornal Zero Hora - 13 julho 2016
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