A nudez de Rita Lee
Abri a primeira página da autobiografia de Rita Lee e não parei mais, a ponto de esquecer o resto da vida. Em meio ao terremoto na Nova Zelândia, minha filha, que mora lá, chamou pelo WhatsApp e eu: “Só um pouquinho, Julia, deixa eu terminar esse capítulo e já falo contigo”. Credo. Esse tal de roquenrou contamina.
Tenho um fraco por biografias escritas pelo próprio biografado. Nada se compara à fluidez da “primeira pessoa”, essa gentil narradora do próprio caos, com vista privilegiada para tudo o que aconteceu. Ainda mais se tratando de uma “primeira pessoa” tão desprendida e sem censura – quem passou boa parte da carreira tendo que prestar esclarecimentos para dona Solange (personagem emblemática da ditadura) não iria se policiar na hora de mostrar o que há por trás das cortinas. Rita Lee conta tudo com a maior desfaçatez e graça.
Dá nome aos bois. Faz lavagem de roupa suja. Dá os créditos a quem merece. Faz um registro sincero das incontáveis vertigens de sua montanha-russa particular: estão lá todos os altos e baixos. Os baixos narrados sem autocomiseração ou culpa, os altos contados sem vaidade ou presunção. É a história como de fato foi, sem esconder nada (se escondeu, foi melhor a gente não saber).
Durante a leitura, lembrei com saudade da Rê Bordosa, personagem maluca e apaixonante criada pelo cartunista Angeli. Que fim levou a rebeldia?
Em uma das passagens do livro, Rita Lee diz que uma vez a convidaram para sair pelada numa revista masculina, e ela respondeu que faria as fotos, sim, mas com três condições: vestida de freira, sem óculos e sem franja. Era sua ideia de nudez.
Ligeira e espirituosa, Rita nunca perde ocasião para sair em defesa da sua identidade – de todas elas. A revista não havia se dado conta de que nunca houve mulher tão despida entre nós, tão francamente exposta – pousar nua pra quê? Rita fez o que quis, e fez de diversos jeitos. Agiu certo, agiu errado, pagou por algumas mancadas, não deixou conta pendurada e agora, sim, entrega o striptease tão sonhado por seus fãs, ao som de sua própria canção: “Qual é a moral? Qual vai ser o final dessa história? Eu não tenho nada pra dizer, por isso digo. Eu não tenho muito que perder, por isso jogo. Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho”.
Mergulhada numa banheira de espuma, com um copo na mão, ela é Rê Bordosa, Erva Venenosa, Miss Brasil 2000, meio Leila Diniz e totalmente Rita Lee: uma gata ainda gastando suas sete vidas.
Jornal Zero Hora - 16 novembro 2016
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