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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 23/11/16

Embriagado pela vida


Não é a primeira vez que escrevo sobre o cineasta Domingos Oliveira e o efeito que ele provoca em mim. Não consigo distingui-lo do seu trabalho, é como se homem e obra fossem uma coisa só. Seus filmes são extensões do seu corpo, ele fica de mãos dadas com cada um da plateia.

Domingos é uma declaração de amor ambulante. Um hedonista, um libertário, um filósofo, um ser pulsante que alterna erros e acertos sem o menor constrangimento porque sabe que a vida é assim mesmo e tentar enquadrá-la como algo plano e sensato seria uma hipocrisia.

Fui assistir ao seu premiado BR716 e saí do cinema com minha admiração confirmada. Domingos já está em seus 80, mas sua alma não tem idade, não acusa o passar do tempo, ele ainda é aquele morador de Copacabana que vivia embriagado de álcool e de enlevo pelas belas garotas que circulavam pelo seu apartamento – BR não é a sigla de uma rodovia, e sim as iniciais da Rua Barata Ribeiro, onde ele morou no início dos anos 60, pré-golpe militar, dando uma festa atrás da outra enquanto tentava escrever um livro. O que não deixa de ser uma viagem.

Caio Blat, que interpreta o alter-ego de Domingos, está perfeito em sua caracterização, melhor do que os atores que interpretam o alter-ego de Woody Allen e chegam lá medianamente. No início, o seu jeito de falar soa estranho, mas logo a gente acostuma. Sophie Charlotte humilha: nunca esteve tão linda, sexy e cativante. Sergio Guizé, no papel de um ativista político regado a algumas doses extras, faz rápidas e definitivas aparições – carisma puro. 

A fotografia em preto e branco é colossal, mas funciona também quando é apenas simples. Os ângulos passam de óbvios a surpreendentes numa piscadela. É tudo dessa forma irregular, incongruente e absolutamente natural. Domingos é Nouvelle Vague e Cinema Novo, é profundo e é comédia, foco e desfocagem intercalando-se.

Como não se deixar seduzir? Seus filmes não parecem filmes, parecem uma pessoa, com caráter e defeitos. Não há sexo explícito, e sim paixão explícita, verdade explícita: Domingos mostra mulheres e homens contraditórios, malucos, românticos, confusos. As falhas não são deletadas, e sim assumidas. Vale tudo, porque o tudo é desse jeito mesmo, múltiplo. Somos amorosos e cafonas, inteligentes e ciumentos, sérios e divertidos. Não existe a supremacia de um aspecto sobre outro, o meu ponto de vista versus o seu. Viver é um projeto coletivo, aberto ao transitório, em que só o que importa é o movimento dos nossos desejos.

Parece um elogio ao filme, mas é um elogio ao ser humano, ao Domingos e a nós todos, no que restou da nossa saudável embriaguez dos sentidos.



Jornal Zero Hora - 23 novembro 2016
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