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segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 12/08/12

Não te escuto

A crônica de domingo passado gerou muitos e-mails de pessoas que me contaram como conheceram seu amor, confirmando que no primeiro encontro também estavam distraídas.

Uma moça disse que conheceu seu marido quando sentaram lado a lado no ônibus. Começaram a conversar e ele acabou descendo na mesma parada que ela, que não era a dele. Ele nunca mais voltou ao seu ponto de descida.

Outra moça me contou que estava caminhando na rua, quando um rapaz passou de carro e buzinou, pensando que ela era uma amiga, mas logo viu que não. Ele acabou parando para se desculpar, garantiu que não era uma cantada, que jamais seria grosseiro, que havia realmente se confundido...e se apaixonaram.

Há os que se conheceram em salas de espera, há quem tenha se conhecido dentro de um avião. Pois esses encontros que sempre foram banais e corriqueiros, infelizmente, deixaram de ser uma fonte de aproximação entre dois amantes potenciais. Hoje as pessoas estão se privando de conhecer uns aos outros por culpa dos fones de ouvido.

No ônibus, no metrô ou no avião, a maioria dos viajantes está ouvindo música. Como iniciar uma conversa com quem está balançando a cabeça para cima e para baixo e batendo o pé no chão, entretido com um rap no mais alto volume? Como ouvir a buzina de um carro enquanto se caminha concentrada escutando uma ópera? Como fazer um elogio, como comentar sobre o frio, como perguntar o telefone do cachorrinho a quem não nos ouve?

Estamos em plena cultura do isolamento - todos parecem sozinhos, mas na verdade estão vivendo uma parceria muito peculiar e com a qual é impossível de competir: o caminhante e sua Norah Jones, o passageiro do ônibus e sua Malu Magalhães, a estudante e seus quatro ídolos do Rolling Stones. Quem se atreverá a interromper esses romances tão particulares.

Se estou dando a entender que não gosto de música, tsk, tsk. Amo. E se parece que não uso foneses de ouvido, uso. Não em todo lugar, não de forma viciante, mas por exemplo, numa caminhada, quase sempre estou entretida com meu iPod e meus pensamentos, e acabo dando bom dia aos passantes por reflexo condicionado, pois, na verdade, não ouço ninguém.

No avião, uso os fones, às vezes. Numa sala de espera, raramente. É mais provável que tenham que interromper a leitura de uma revista ou de um livro, o que é bem mais fácil. "Já li esse livro, o final é ótimo." " Você não vai me contar, vai?" "Não faria isso com uma moça tão simpática"...E está aberto o caminho.

Como tudo e como sempre, evoluções e involuções fazem parte do mesmo pacote. A tecnologia aumenta seu prazer individual, mas reduz seu prazer coletivo. Você pode não querer falar com ninguém, respeita-se, mas também não escuta ninguém. E sem escutar não se inicia um amor.

Não existe amor sem escutar nem mesmo nos casamentos estáveis e longos. Sem escutar, só o silêncio nos sai pela boca e só a solidão nos entra pelos ouvidos.


Jornal Zero Hora - 12 agosto 2012
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