Foto: Yosigo
Vou manter o nome dele em sigilo, já
que é um renomado cirurgião, mas vou delatar o crime: meu pai não tem celular.
Em sua defesa, ele diz que pode ser encontrado no consultório ou em casa, esses
dois telefones bastam, sempre bastaram. Mas, pai, e se teu carro pifar no meio da estrada? E se te sentires mal
durante uma caminhada na rua? E se te atrasares no caminho para buscar a
namorada? Ele é um homem moderno, aos 76 anos tem
uma namorada, mas não tem
celular.
Eu ficava
indignada por ele manter essa inacessibilidade. Parecia que ele estava querendo
apenas ser diferente dos outros, e os diferentes sempre dão a entender que são
mais evoluídos, que possuem uma sabedoria que nós, reles mortais, jamais
conseguiremos atingir. Como ele pode prescindir de um aparelho imprescindível?
Ora, imprescindível para mim, para você. Para ele, não é. Só então lembrei como
também costumo ser patrulhada.
Faz pouco
tempo, uma amiga demonstrou uma irritação descabida comigo. Não entendi: O que foi que eu fiz?. Ela disse que eu fazia isso só pra me exibir. Isso o quê, criatura?. Não conseguia adivinhar o que a magoava, até que ela esclareceu. Você não tem Facebook nem Twiter para se
sentir superior.
Eu
realmente não uso as redes sociais. Sei que tem Faces que divulgam frases
minhas, e que há alguns perfis de pessoas que fazem de conta que sou eu, mas
não sou eu. Não é para me sentir superior ou inferior: simplesmente não tenho
tempo sobrando. Á é um esforço conseguir manter a caixa de e-mails
razoavelmente atualizada, para que procurar mais encrenca na minha vida? Meu
tempo ocioso é sagrado; Expliquei para minha amiga que não era nada pessoal,
que ela relaxasse, mas aquele dia ela estava surtada pela TPM. O Face e o
Twitter eram apenas os primeiros itens de uma longa lista que ela havia
mentalmente preparado para me condenar à exclusão.
E quanto a não
idolatrar a ajuda das empregadas, como qualquer outra mulher atarefada?. Não acreditei que estava tendo essa conversa. Lembrei que uma semana antes
havia comentado que a hora mais feliz do meu dia era quando a empregada saía
pela porta dizendo: Até amanhã, dona Marta. É uma funcionária exemplar que esta comigo há mais de 20 anos. Trabalha de segunda
a sexta das 10 às 16
horas, e ainda vibro quando ela pede pra sair mais cedo. Adoro escutar a porta
batendo e a sensação de que estou sozinha em casa. Jamais cogitaria que alguém
trabalhasse para mim à noite ou as sábados( já devo ter levado muita chibatada
no tronco em outra encarnação). Preciso do serviço dela porque ainda tenho
filhas morando comigo, um apartamento grande e tal. Mas chegará o dia em que,
filhas no mundo e apartamento menor, ficarei no meu canto tomando conta de mim
mesma. Minha amiga acha isso o cúmulo do esnobismo.
E sobre não gostar
de bater perna em shopping? Ué, não gosto, é pecado? Vou quando tenho que comprar
um presente ou quando preciso de algo especifico, mas não me convide para uma tarde olhando
vitrines. Experimentar roupas em cabine de loja me faz simpatizar com a morte.
Mas de dirigir você gosta, não gosta? Amo. Mesmo com esse transito esquizofrênico? Mesmo. E vem dizer que não está bancando a diferente.
Pelo andar
da carruagem, eu sabia que a discussão iria acabar nos contos de fadas, e não
demorou nada. Logo ela tirou da manga a vez em que contei que, quando menina,
meu desenho animado favorito não era o da Gata Borralheira nem o da Branca de
Neve. Sempre fui fã do Mogli. Minha amiga não se conforma até hoje. Claro, a fanática pela vida na selva, a
porta-estandarte da liberdade, só podia mesmo vibrar com um pirralho criado
entre os bichos da floresta, sem pai, nem mãe, nem fada madrinha.
Não
resisti e, só para provocar, comecei a cantarolar a música do urso Balu: Eu uso o necessário/somente o necessário/ o
extraordinário é demais/ o necessário/ somente o necessário/por isso é que essa
vida eu vivo em paz.Mogli me
ensinou a diferença entre o
dispensável e o
vital, enquanto as princesas tentavam me empurrar goela abaixo que o certo era
esperar(deitada e dormindo) pelo surgimento de um príncipe. Por pouco não caí
nessa.
Minha
amiga tinha mais um item da lista que, segundo ela, me tornava um ser esquisito
à beça.E sobre
viajar sozinha, quer me explicar? Viajar sozinha é outra
anomalia que ela não perdoa. Não é possível que você goste.
Confesse: você chora
escondida no quarto do hotel. Ninguém pode considerar agradável sentar num restaurante em Paris e conversar somente com seus botões.
Bom, eu
nunca escondi que me derreto por uma lua de mel: claro que a melhor coisa do
mundo é viajar com o amor da nossa vida. Mas, se durante um período de
entressafra, o amor da sua vida for apenas você mesma, vai ficar mofando em
casa a troco de quê? Qual o problema de dar um giro por Roma, Nova York, Buenos
Aires? Humm, já começo a ter ideias.
O problema
é que ir contra o senso comum é considerado um desaforo. Mulher tem que adorar
falar ao telefone (detesto), tem que torrar o salário em bolsas e sapatos
(prefiro colares e pulseiras), tem que ter lido e amado Cinquenta Tons de Cinza
(há outras prioridades na minha mesa de cabeceira) e tem que sonhar em perder 2
quilos.
Ufa, agora
encontrei minha turma. Também sonho em perder ao menos 2.
Todos nós somos diferentes e
idênticos, dependendo do que se trata. Temos desejos e angústias parecidas, e
desejos e angústias únicas. Uns são mais iguais que outros, uns são mais
estranhos que os demais, e essa saudável miscelânea é que dá graça à vida. Não
há mais sentido em falar em rebanho, como se
houvesse uma tribo hegemônica e o
resto fosse periférico e
marginal. Além do rebanho, há alcateias, cáfilas, cardumes, manadas, bandos
variados que se frequentam e se divertem mutuamente. Que ninguém se sinta ameaçado em suas
convicções sobre o que é normal. Tudo é normal, desde que não faça mal.
Martha Medeiros - Revista Lola - Dezembro/2012
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