A Martha Medeiros ainda não voltou, portanto hoje também não tem coluna dela
no Zero Hora, então decidi publicar um texto de um outro
escritor que gosto
muito - Ivan
Martins.
Afetos Impossíveis
Conheço um sujeito que se apaixonou pela cunhada. Um dia começou
a pensar nela antes de dormir. Pouco depois, percebeu que não via a hora de
encontrá-la nas reuniões de família. Não que fosse uma beldade, ele me disse.
Era apenas uma gordinha brejeira, diferente da pálida elegante que ele
namorava. De tanto desejar a mulher do irmão, começou a imaginar que ela também
o queria. Achou que percebia olhares, sorrisos, raspões de corpo na porta da
cozinha. Um dia, meio bêbado no almoço de domingo, na casa dos pais, teve
certeza de que ela tocava os pés dele embaixo da mesa. Uma loucura.
Como não era personagem do Nelson Rodrigues, nem a vida dele uma
tragédia suburbana, num dado momento o surto passou, antes que ele tivesse
tempo de fazer qualquer loucura.
De alguma maneira, percebeu que, em vez
paixão, o que estava sentindo era puro assanhamento - explicável, em boa
medida, pelos problemas dele com a namorada. Quando as coisas recomeçaram a
funcionar na intimidade dele, a cunhada voltou a ser apenas a mulher sorridente
e carinhosa que sempre fora.
Por trás dessa história inofensiva existe algo que eu chamo de
“afetos impossíveis”. O alvo desses sentimentos insolúveis pode ser qualquer
pessoa, mas a situação é sempre a mesma: uma fantasia amorosa invade a nossa consciência
e ocupa o espaço da vida real. Em vez de mandá-la para o ralo dos devaneios
inconfessáveis, nós abraçamos a aberração. Então os problemas começam.
Há homens maduros
que se apaixonam pela filha do vizinho. Há professoras que ficam obcecadas por alunos
adolescentes. Há garotas transtornadas por outras garotas que nada querem com
elas. Até gente enamorada do amigo ou da amiga cabe nessa definição. O que liga
todos esses casos é a ausência de esperança. O que os torna parecido é o fato
de esporem os caprichos do nosso desejo.
Nós queremos tudo, o tempo inteiro. Afeto, sexo, admiração,
objetos. É um milagre de sanidade que a máquina de querer que somos nós consiga
estabelecer com o mundo – e com outras pessoas transbordando de vontades –
alguma relação civilizada. Na maior parte do tempo, mantemos sob controle o
aparato desenfreado de querer. Aplicamos sobre ele o duro princípio da
realidade. Eu quero, mas Fulana não quer. Eu tenho vontade, mas não posso. Já
tentamos e não deu certo. São mecanismos racionais de defesa que funcionam.
Secretamente ainda queremos, mas esses mecanismos nos ajudam a socar a vontade
inconfessável no porão da alma, lá embaixo, onde só entramos escondidos uma vez
por ano, geralmente bêbados.
Quando permitimos que uma vontade assim escape do porão ela vira
um afeto impossível, espécie de Godzila emocional destruindo o centro de
Tóquio, que somos nós. Desejo pela cunhada, paixão pelo amigo gay, o impulso de
procurar aquela mulher que agora está casada com dois filhos. Que tal escrever,
de novo, para aquela pessoa que trata você como lixo? Ou reatar o romance
destrutivo que pôs à mostra o que há de pior em você?
Não é preciso ser tabu para ser um afeto impossível. Cada um de
nós conhece melhor que ninguém o rosto do seu mostro e os contornos do porão
sombrio de onde ele saiu. São desejos sem correspondência na realidade.
Autoindulgências perigosas. Situações trágicas, no sentido de que o seu
desfecho é mais ou menos inevitável desde o início. Coisas que nos machucam, e,
no limite, são capazes de nos destruir. Quem se concede esse tipo de fantasia
está fadado a dar com os burros n’agua 9,5 em cada 10 vezes. Mas muitos
insistem em tentar.
Afinal, hoje em dia vivemos para realizar os nossos desejos.
Acreditamos que a satisfação das nossas fantasias é a única forma de felicidade
- na vida material e nas relações afetivas. Em vez de cultivar o senso de
proporção e de realidade, agimos, na vida amorosa, como consumidores afoitos
para quem tudo está disponível. Acreditamos no triunfo do desejo mesmo que ele
dispute com a lei da gravidade.
Pois eu acho que os limites existem. Cunhada não pode, filha do
vizinho é demais, gente maluca não dá. Quem apenas nos faz sofrer está fora da
lista, paixão platônica por amigos é burrice, dependente químico precisa de
médico. Nem tudo que desejamos é legítimo, afinal. Nem tudo pode. Um dia temos
de aprender a dizer não para nós mesmos e olhar os erros de frente. Aprender
com as decepções. Em vez de ilusão, realidade. Em vez de devaneio, mundo real.
Os afetos impossíveis resultam em boas histórias do Nelson Rodrigues – mas são
histórias que ninguém quer levar na própria biografia.
Ivan Martins - Revista Época - 31/07/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Vem cá, me dá um abraço?!?!?