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sábado, 19 de outubro de 2013

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 20/10/13

Quando a fila não anda

As duas chegaram na minha frente rindo muito, felizes da vida. Eu, sentada atrás de uma mesa, tirei conclusões apressadas: são irmãs, são amigas de infância, são colegas de trabalho, talvez até namoradas. Autografei o livro para uma, autografei depois o da outra, que eu estava ali a trabalho. E elas se cutucavam, cochichavam, tiravam fotos juntas, não se desgrudavam.

Me surpreendi com aquela alegria tão refrescante, já que o óbvio seria encontrá-las esmorecidas, ambas estavam há mais de uma hora numa fila que andava a passos lentos. A morosidade não era culpa minha, e sim da situação, mas mesmo assim me desculpei e agradeci: obrigada por esperarem tanto. Imagina, em que outro local teria conhecido aqui a Adriana? Filas são ótimas para fazermos novas amizades. E saíram as duas rumo ao primeiro chope de suas vidas agora interlaçadas.

E já que tudo está interlaçado, no dia seguinte mesmo recebi um e-mail com uma sugestão de texto de uma senhora que não era nenhuma daquelas duas moças, mas que também havia feito uma amizade em uma fila: “Escreva sobre essa conspiração do destino: pessoas que se conhecem enquanto aguardam ser atendidas”.

Eis-me aqui cumprindo ordens.

Não odeio filas porque não odeio nada, mas não é um acontecimento pelo qual eu anseie. Fila, para mim, é a representação máxima da perda de tempo, e tempo é algo que valorizo mais do que pérolas, jades, rubis. Não escapo de enfrentá-las em bancos, cinemas e em sessões de autógrafos de amigos escritores, mas não recordo de ter feito alguma nova amizade durante a espera. Ou fiz?

Sim, conversa-se em filas. Ainda mais se a fila for demorada e provocar queixas: dois irritados é o começo de uma rebelião. Tem uma rede de supermercado na cidade que me deixa com os nervos destruídos, quase já não a frequento, só em raríssimas ocasiões para comprar dois ou três itens urgentes, e mesmo assim ele desafia meu espírito budista com seus poucos caixas abertos, seus funcionários mal treinados, seus carrinhos abandonados no estacionamento, suas sacolas plásticas que não resistem até a chegada em casa.

Nem mesmo o cartaz avisando que agora existe um gerente (virtual) adianta grande coisa. Então, na inevitável fila que se forma, viramos todos clientes guerrilheiros a fim de ver sangue. Não inauguramos ali amizades fraternas, mas ter uma raiva em comum já é um elo.

Desviei do assunto. Era para eu ter falado de pessoas que se tornam amigas de infância durante uma conversa em pé, aguardando pacientemente para realizar sua meta. Conclusão? Até das chatices se pode tirar algum proveito. As filas tornaram-se o novo bar – em frente dos quais, aliás, elas se formam também, longas, animadas, fervilhantes, não raro sendo a principal razão de se ter saído de casa.


Jornal Zero Hora - 20 outubro 2013
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2 comentários:

  1. Martha, moro na Polônia h[a quase dez anos e só hoje fui ler um de teus poemas, que roubou-me o sono e despertou o interesse pela tua obra como escritora, aforista e poetisa brasileira.

    Queria compartilhar o achado com minha esposa que é Polonesa, com meus amigos Romenos, Italianos, Mexicanos, Alemães, Sul-africanos - no entanto as traduções que circulam pela internet são absurdas. “Moare cate putin” em Romeno tem 9 versos a mais, em inglês existem 3 versões com títulos diferentes, "Die slowly"ou "Slowly die" - sem contar com a absurda tradução que circula em espanhol, atribuindo o poema a Pablo Neruda. Existem traduções autorizadas pela autora para "A morte devagar"?

    Aqui segue meu abraço!

    ResponderExcluir
  2. Edésio, você pode se comunicar com a escritora Martha Medeiros através do e-mail:

    marthamedeiros@terra.com.br

    Abraço
    Lu

    ResponderExcluir

Vem cá, me dá um abraço?!?!?

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