Mexicanas
“Ando tão mexicana...”
Certa vez, coloquei essa queixa na boca de uma personagem de um livro para
resumir como ela se sentia depois do fim de um amor. Ela chorava muito,
tinha reações extremadas, dramatizava sua situação como se estivesse enfiada num
vestido floreado e com uma flor vermelha no cabelo: uma mulher sofrendo sem
nenhuma sobriedade.
O que eu sabia do
México na época em que escrevi o livro? Que era um país colorido, apimentado e
de emoções exuberantes – certamente eu estava induzida pela imagem que tinha de
Frida Kahlo, cuja vida e obra se misturaram adquirindo uma potência que é hoje
reconhecida por todos. O México me parecia um país cuja história e costumes
estavam sempre escancarados, um país sem bastidores, apenas palco. Sofrer com
sobriedade é para escandinavos, não para latinos.
Uma visão
estereotipada, reconheço, mas depois de ter conhecido o México, de onde voltei
recentemente, pude comprovar que eu não estava tão enganada. É um país que não
engaveta seu passado e cujas cores berrantes nas fachadas, no artesanato e nos
murais são um atestado de bravura e de orgulho. O México se expõe. Eu tinha
razão ao adjetivar como mexicana uma mulher com suas feridas abertas.
Só não sabia que
isso nada tinha a ver com vitimização.
Voltemos a Frida:
teve poliomielite aos seis anos de idade. Aos 18, sofreu um acidente de ônibus
que deixou sequelas graves – um pedaço de ferro entrou pelo seu quadril e saiu
pela virilha. Passou por 35 cirurgias. Engravidou três vezes – e três vezes
sofreu abortos espontâneos, não conseguindo realizar o desejo de ser mãe. Foi
amada por seu marido Diego Rivera, mas teve que dividi-lo com várias outras
mulheres, entre elas sua irmã mais próxima. Esse é apenas um resumo acanhado da
biografia da pintora, sem entrar no mérito de sua arte e de seu engajamento
político. Frida passou por dores torturantes, tanto físicas quanto emocionais,
e em nenhum momento a gente tem dela a imagem de uma coitada. Por quê?
Porque, ainda que
ela tenha revelado todo o seu drama nas telas que legou ao mundo, choramingar
não era seu verbo. Viver, sim. Sofreu sem jamais perder o viço, o gosto e o
entusiasmo pelos dias.
O sofrimento é um
velho conhecido de todos nós, mas costumamos ter pudor com nossas lágrimas. A
maioria das pessoas reparte sua infelicidade só com dois ou três amigos, às
vezes com ninguém. Poucos sofrem com a vitalidade de Frida, que transformou sua
dor em uma causa.
Quando minha
personagem disse “ando tão mexicana”, ela não sabia o que falava e eu não sabia
o que escrevia. Ambas reclamando de uma intensidade que só hoje reconheço como
virtude. Agora sei que sentir-se mexicano é um elogio, não um estigma.
Martha Medeiros -
Jornal Zero Hora - 27 maio 2015
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Trecho do livro "Divã":
“Pareço estar acalma, não pareço? Sou quase oriental nas nossas sessões, pode reparar, nunca levantei a voz ou me descontrolei. Sou latina muito raramente. Mas tudo mudou. Ai, Lopes, ando tão mexicana...
Por dentro, quase histérica. É muita buzina, muito sol, muito batom pra fora do lábio. a vontade que tenho é de entornar vários copos de tequila e de escrever versos de amor vagabundos. Tem sido quase impossível manter-me cool, manter-me japa. Minha vida tem sido acalorada, apimentada, 40 graus à sombra.
Gustavo ajuda como pode,mas não pode tanto. Delegou a mim a tarefa de conduzir nossos dias. O que me faz parecer assim tão forte: sou a que controla contabilidade da casa, que arquiteta os planos para o futuro, a que administra os verões, os invernos, a estiagem e as inundações, sou a que segura a barra de todos, a voz que manda e desmanda, a que não dorme à noite,pensando,pensando, pensando.”
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