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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 01/11/15

O cartão do estacionamento


Nada se compara com a relação que tenho com aquele pequeno papel cuspido por máquinas a fim de liberar a entrada

Sou meio avoada, às vezes esqueço onde larguei as chaves, os óculos, mas, até aí, quem não? Nada se compara, no entanto, com a relação que tenho com aquele pequeno papel cuspido por máquinas a fim de liberar a entrada nos estacionamentos de supermercados e shoppings. Pego o tíquete e largo no console do carro. Ou pego e largo em cima do painel. Ou pego e jogo dentro da bolsa. Tudo da mesma forma mecânica como ele me foi entregue, pá pum, e bora entrar no prédio a fim de encontrar logo uma vaga.

Depois de algumas voltas, a sinalização verde em cima de uma vaga indica: liberada, é sua. Então, estaciono. E a partir daí a história de terror pode ter vários roteiros.

1) Eu esqueço a droga do tíquete dentro do carro. Vou ao cinema, vou às compras, faço o que tenho que fazer e então retorno para o carro e reparo que o tíquete ficou ali. Com ódio de mim, lá vou eu de novo para dentro do shopping ou do supermercado a fim de validá-lo para a saída. Perdi minutos que não tenho para desperdiçar.

2) Eu esqueço a droga do tíquete dentro do carro. Vou ao cinema, vou às compras, faço o que tenho que fazer e então retorno para o carro e NÃO reparo que o tíquete ficou ali. Ligo o carro, dirijo até a cancela e só então me dou conta de que não validei o tíquete, e já tem outro carro atrás de mim fazendo sinal de luz ou buzinando histérico. Não podendo dar ré, tenho que encontrar uma rota de fuga lateral ou então chamar alguém pra me ajudar e aí não estou mais com ódio de mim, e sim desejando a extinção da humanidade.

3) Eu não esqueço a droga do tíquete no carro. Carrego comigo. Vou ao cinema, ao teatro ou à Livraria Cultura, no Bourbon Country. Na hora de ir embora, subo pelas escadas rolantes e só quando estou lá em cima é que me dou conta de que os guichês de pagamento estão lá embaixo, escondidos num canto. O plano é fazer com que a gente circule pelos corredores do shopping e seja atraído por alguma vitrine, gastando mais do que o pretendido inicialmente. Genial. Porém, mais genial seria manter os guichês na saída, como era antigamente, a fim de facilitar a vida dos clientes.

4) Eu não esqueço a droga do tíquete no carro, eu faço o que tenho que fazer e antes de ir embora eu lembro de validar o tíquete no caixa do súper ou de pagá-lo no guichê do shopping, tudo direitinho. Então vou até o carro e, nesse curto trajeto entre a saída do estabelecimento e a entrada no veículo, o tíquete some. Desaparece. 

Não o encontro em local algum. Reviro a bolsa, a carteira, olho embaixo dos bancos, dentro do porta-luvas: o tíquete evaporou. Retorno para dentro do estabelecimento com a cabeça baixa e as palmas das mãos unidas e estendidas, podem me algemar. Em qualquer um desses roteiros, a conclusão é de que a culpa é toda minha: ainda vivo no tempo em que estacionamento era de graça.



Jornal Zero Hora - 01 novembro 2015
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